Depois do teatro
texto por Marina Schiesari
Assim como em uma operação figurativa de assimilação da alteridade, em que a destruição parcial do Outro – e também do Mesmo – é inaugurada no processo incessante de recomposição.
Seguindo a lógica da devoração do Outro formulada por determinados povos originários, a antropofagia foi incorporada pelos modernos ao imaginário brasileiro como banquete político entre corpo e cultura. Dentro dessa transposição simbólica, ela se apropriou de uma hibridização universalizante, anulando as diferenças estruturais existentes entre mundos e linguagens. Em resposta ao atrito de expansão e apagamento, Nicholas Steinmetz atravessa as dicotomias intimamente ligadas aos rituais cotidianos por ele observados e absorvidos, evidenciando nelas as violências que a antropofagia universalizante tentou dissolver.
Mastigar, engolir, nutrir e, depois, repetir são necessidades fisiológicas, como oposição ao enfraquecimento, à anemia, à redução das potências de si. Notadas no corpo, essas experiências necessárias são extrapoladas como forma de produzir significado. Mesmo atravessadas por distâncias culturais, persistem as expressões da condição animal que retorna a nós em um estranhamento. Por isso, a obra de Steinmetz reside na fome: agarra, fareja, abocanha signos da alimentação, compondo um campo de conflito e afeto partilhado diante desse continuum espacial e temporal narrativo.
Do estômago à cena, a devoração desenha a amorfização em que o Mesmo – o próprio, o interior, o próximo – se encontra com o Outro – o estrangeiro, o exterior, o longínquo. Como marca exata da transição do de fora para o de dentro da boca, a instalação Arcada, de Nicholas Steinmetz, condensa os estados de poder, continuidade e transformação no ato de engolir. Dentro de sua incorporação visual, silhuetas estruturadas como cenários teatrais contornam as passagens dos tempos Mesmos, compondo uma polissemia interpretativa que convoca os Outros a ali coabitar.
Ao representar essas práticas como um teatro do vivido, Steinmetz se entende não apenas como pintor, mas também como ator diante do Outro. Para isso, aproxima-se do efeito brechtiano: rompe a ilusão de naturalidade e evidencia a construção da cena, convidando o público a enxergar a artificialidade do ato representado. A instalação ergue-se sobre madeiras dispostas de modo diastêmico, instaurando intervalos que deslocam o objeto artístico para sua articulação com a vida cotidiana – nesse caso, o gesto de servir-se à mesa.
Esse deslocamento não ocorre apenas no espaço, mas também no corpo. As marcas das pinceladas carregam o movimento dos pulsos, cotovelos e ombros, tornando visível a atuação do artista na própria imagem. Nesse ponto, ressoa o efeito benjaminiano: a obra registra o traço do habitante de um tempo, o vestígio de quem esteve presente. Assim, a mesa torna-se um espaço de partilha, em que cada visitante é convidado a atravessá-la – incorporando ou rejeitando o que se oferece –, e, nesse gesto, a consagrar a alteridade depois da encenação, depois do teatro. Depois do teatro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou o gaio saber inquieto: O olho da história III. Tradução de Márcia Arbex e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. Trecho extraído da página 64.
IVERNEL, Philippe. Passages de frontières: circulations de l’image épique et dialectique chez Brecht et Benjamin. Vincennes: Presses Universitaires de Vincennes, 1988. Menção à página 7.
MODÓS, Daniel Caio Santos. “Antropofagia e antropomorfismo”.
ROLNIK, Suely. Antropofagia zumbi. São Paulo: n-1 edições, 2021.